“Água de Cheiro”

Trouxeram os portugueses, com todo o mimo, a devoção ao filho de Elizabeth, as crendices e superstições a ele ligadas. Para Santa Maria do Belém. E se nota uma coisa interessante, até certo ponto rara no meio social amazônico: quase nenhum sincretismo ocorreu nas práticas e rituais das crendices joaninas. O índio não influiu no caráter mítico e cultual das festividades de São João. O seu banho, de rio, por exemplo, praticado com tanta frequência, é simplesmente um banho de limpeza e para refrescar o corpo do calor tropical. O que se pode dizer é que o banho-de-cheiro do paraense foi buscar ingredientes em maloca de índio: aromas de selva amazônica.

 

O banho de São João teve origem no costume português do banho-de-rio obrigatório no dia do santo precursor. Praxe que no século quatorze já era comum na Europa ocidental. Petrarca presenciou na cidade de Colônia uma estranha solenidade. Véspera de São João, o povo reunido à borda do Reno ia imergir o corpo na água, murmurando orações e fazendo pedidos ao santo. O ato ainda se pratica no Pará. Como na cidade de Belém é difícil para a maioria da população fazer abluções no rio, toma-se o banho-de-cheiro, nada mais nada menos do que uma forma simbólica de ablução. E ablução perfumada.

A escritora Eneida de Morares dá a receita: “Tomais de uma lata de banha bem limpa. Dentro dela, com bastante água, jogai folhas, raízes, madeiras cheirosas da Amazônia que, raladas, esmagadas – verdes pela juventude ou amareladas pela velhice – darão, depois de fervidas, um líquido esverdeado, com estranho perfume de mata virgem”. O escritor Jaques Flores descreve: “Após uns três ou mais mergulhos e outras tantas braçadas, o cidadão derrama, então, cabeça abaixo, o cheiro de cuiapitinga, e subindo a escada da ponte retoma à casa do anfitrião. Um empregado recolhe as cuias, enquanto outro distribui as toalhas”. O banho-de-cheiro (deu título a livro da belemense Eneida) é o resumo de todos os anseios de felicidade. Quase ninguém deixa de fazer escorrer pelo copo a água de perfumes bons, preparada em casa ou adquirida nos mercados e casas do ramo.

A cachaça-cheirosa, ou “garrafada”, é de uso permanente. Dizem que possui os mesmos dons miraculosos do banho-de-cheiro. Pelo menos “fecha o corpo” para as coisas ruins e “abre os caminhos”. É um perfume ameno e agradável, bastante apreciado pelas mulheres, que se aplica no corpo depois do banho, fazendo às vezes de Água de Colônia, ou então se derrama na tina de água para o banho-de-cuia. Antigamente os banhos-de-cheiro eram vendidos nas ruas. E havia os pregoeiros anunciando aos quatro ventos: “Cheiro cheiroso! Cheiro cheiroso! É do bom e do melhor para o banho de São João!”.

Os artigos de cheiro tem uma tradição muito grande na nossa cultura. O cheiro é uma mistura de cascas de árvores e raízes, que são raladas e depois dosadas de acordo com o aroma de cada uma, transformando-se em pó granulado de perfume peculiar. A matéria-prima do cheiro na sua maior parte é originária de exemplares nativos de nossa flora. As raízes são o patchuli e a priprioca, e as cascas são de Macacaporanga, Casca Preciosa, Mucuracaá, Cipó Catinga, Japana, Mangerona, Catinga de Mulata, Trevo Mangericão, Pataqueira, Cumarú, Oriza, para destacar as mais usadas.

O patchuli, também grafado com patexulí e pachuli, é uma palavra que quer dizer folha verde (pacu = verde + ilai = folha). É uma herbácea da família das Gramíneas, originária da Malásia. É da raiz seca do patchuli que se fazem leques e ventarolas que ao movimento de abanar exalam um perfume peculiar, exótico. Fabricam-se também bonecas decorativas. De sua folha confeccionam-se chapéus. É também utilizada a raiz, em molhos amarrados, para perfumar roupas e afugentar insetos. A raiz do patchuli é utilizada na tradicional garrafada, que é um cheiro líquido feito com álcool, raízes e cascas de árvores, usado pelo paraense, principalmente após o banho. O aproveitamento do cheiro pelos artesãos é variado, apresentando-se natural, em sachet (pequenos pacotes de papel de seda ou de pano) para perfumar móveis que contenham roupas, pequenas bonecas conhecidas como Nêga Maluca e colocado no álcool ou em colônias. Os produtos da Chamma da Amazônia – ecológicos e elaborados com ajuda da população ribeirinha de Belém – refletem uma filosofia de proteção à natureza e valorização da cultura cabocla e indígena. “Vendemos um produto com alma, história e raízes”, explicam os proprietários Fátima Chamma e André Pinheiro. Fátima investiu em um antigo projeto de seu pai, que há 40 anos criou a Casa Chamma em frente do mercado público de Belém. O comerciante libanês Oscar Chamma criou a Casa Chamma nos anos 50, desenvolvendo perfumes e cosméticos derivados de produtos da Amazônia, como patchuli, a priprioca e alfazema. Oito anos antes de sua morte, a loja sofreu um incêndio. Com a marca nas mãos, Fátima viu na incubadora a chance de recuperar a marca. Participou de eventos do setor, analisou o mercado e as possibilidades dos produtos e obteve recursos obtidos junto à Finep, com aval do Sebrae. A pequena casa de cosméticos cresceu a partir de 1996, com a participação no Programa de Incubação de Base Tecnológica da Universidade Federal do Pará. Desde então, a Chamma já espalhou 24 lojas e quiosques em várias capitais brasileiras.

A raiz de priprioca, base dos banhos de cheiro da Chamma da amazônica, possui um aroma incomum, amadeirado, picante, ideal para a elaboração de perfumes sofisticados, tem uma lenda indígena: “Numa aldeia ribeirinha, em algum lugar distante da Amazônia, habitava um jovem guerreiro de forma esbelta e valentia incomparável. Ele era Piri-Piri, um índio cobiçado por todas as jovens da aldeia. Certo dia, não aguentando mais de paixão, uma jovem índia, de corpo sinuoso e longos cabelos negros, resolveu pedir ao feiticeiro da aldeia para ajudá-la com o valente índio, ensinando-lhe um encanto. O feiticeiro da tribo, que também era seu pai, disse-lhe que isso seria perigoso, pois o encanto poderia dar errado. Mas ela, num rompante de egoísmo e paixão, disse: – Se aquele bravo guerreiro não puder ser meu, não será de mais ninguém. O pai, convencido, cedeu aos apelos da filha, e então começou a ensiná-la. O encanto consistia em, numa determinada noite de lua cheia, enquanto o bravo guerreiro dormisse, ela, com os seus próprios cabelos, amarrasse os pés dele. E assim foi feito. Mas o resultado não foi o esperado, pois assim como o seu tinha lhe dito, o encanto havia dado errado, e o bravo guerreiro desaparecera em meio a uma nuvem de fumaça de agradabilíssimo aroma. Algum tempo depois, no local de seu desaparecimento, começou a nascer uma espécie de grama com raízes estranhas, em forma de caroços, de cheiro enebriante, muito similar ao da nuvem de fumaça em que o guerreiro desaparecera. Deste dia em diante, por acharem que o índio Piri-Piri ainda vivia, e que havia sido transformado pelo encanto do feiticeiro em guardião das florestas, todas as índias da aldeia passaram a se utilizar do fascinante aroma que a tal raiz exalava, em forma de banhos, lavando os cabelos com a infusão da raiz triturada em água cristalina. Em homenagem ao índio, a raiz começou a ser chamada de Piripirioca, logo após sendo simplificada para priprioca” .

 

Fonte:

http://jangadabrasil.com.br/junho/pn10060a.htm

http://www.tvliberal.com.br/npara/edicao4/artesan/cheiro.htm

http://www.cherto.com.br/artigos/Chamma.asp

http://www.antropofagica.hpg.ig.com.br/eneida1.htm

http://www.finep.gov.br/bv/noticias/chamma.htm

http://www.chamma.com.br

 

acesso em maio de 2002

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